Modernidade e Pós-modernidade: Sonho dos Perpétuos

Sandman e a História ou A Epistemologia do Sonho:
realidade e fantasia nas linguagens estéticas e teóricas do fim do século
XX

“Nada é fixo para aquele que alternadamente pensa e sonha...”.
Gaston Bachelard
Polêmicas do Pós-moderno

I
Houve uma época em que os homens deixaram de acreditar na diferença entre a realidade e os sonhos, ou não sabiam mais diferenciá-los – e essa era a nossa época. Bem, na verdade, nem todos os homens se perderam nas fronteiras entre o fato e o dito: e esta é a razão por que este ensaio existe. Meu objetivo aqui é empreender uma análise das noções de realidade e fantasia, tanto no campo da estética como no das Ciências Sociais no fim do século XX – ou, como preferem alguns, no período pós-moderno. Partindo desta análise, pretendo construir – fundamentado nas idéias de Meiksins Wood, Hobsbawm, Habermas e outros – uma crítica do ideal pós-moderno, enquanto ideal de pensamento científico, porém afirmando a pertinência de seus questionamentos e a sua validade enquanto tendência estética – uma entre tantas possíveis.

Ciro Flamarion Cardoso, em seu famoso ensaio intitulado História e Paradigmas Rivais (1993), fala-nos do que ele chama de “paradigma pós-moderno”: uma certa sensibilidade que se intensifica a partir da década de 1960, que tende para o idealismo e o irracionalismo, se bate contra as unidades e nega a possibilidade do conhecimento do mundo “real”, (hiper)valorizando em seu lugar, a instância “cultural” do conhecimento – ou seja, propugnando que o conhecimento é uma construção “particular” de cada sociedade ou cultura, que visa explicar o mundo segundo interesses localizados, e que as diferenças entre interesses e culturas engendram conhecimentos diferentes (todos de valor equivalente). Ao impacto deste pensamento sobre as noções de realidade e fantasia nas linguagens estéticas e nas Ciências, principalmente a História, estou chamando de epistemologia do sonho.

Para a análise da linguagem estética, tomarei como referência principal a HQ de Neil Gaiman, Sandman (GLOBO, 1989), que entendo como um artefato cultural expressivo do ideal pós-moderno de rompimento (e celebração) das fronteiras – incluindo aquelas que separam o real e o fantástico –, fundindo elementos extraídos da realidade com outros, extraídos de diferentes ficções e mitologias, embaralhando “fatos verdadeiros” e “fatos inventados” num único discurso dotado de beleza e de coerência interna. Já para a compreensão dos discursos teóricos (seria melhor dizer “históricos”), utilizarei como objeto de análise um artigo de Durval Muniz de Albuquerque Junior, intitulado História, a arte de inventar o passado, no qual o autor propõe para a história um estatuto, se não idêntico muito semelhante ao da ficção – a história seria, então, apenas direcionada para um tipo diferente de sensibilidade (ou de interesse) e de público.

Para a conclusão do trabalho, gostaria de trazer à baila o ataque veemente de alguns estudiosos – como Dosse, Hobsbawm, Meiksins Wood e Merquior – contra o pós-moderno (e sua epistemologia do sonho), incorporando suas posições sobre a cognoscibilidade do real, e suas defesas das unidades, da ciência e da razão. Porém, paralelamente, a fim de não deslizar de um extremo a outro, pretendo, junto com Bachelard, defender a premissa de que deve haver compreensões diferenciadas para os estatutos da ciência e da arte (sendo ambas manifestações legítimas do espírito humano), levando em consideração o fato de que possuem procedimentos e atividades mentais distintas – quer dizer, podemos alternadamente pensar e sonhar.
II

Uma epistemologia do sonho somente poderia se definir em relação a uma epistemologia “do real”. Gostaria, portanto, de iniciar a discussão, por um entendimento mais claro dessa antinomia que parece ter surgido, a partir da década de 60 do século XX, devido a determinado tipo de manifestação artística (”pós-aurática”) e a uma certa postura recorrente nas vertentes teóricas que dominaram a cena nas Ciências Sociais. Ganhou corpo nessa época a idéia de que toda uma era da história humana – a Modernidade – tinha chegado ao fim, e uma nova era se iniciava – a esta nova era chamaram pós-modernidade. O que evidenciaria o nascimento dessa nova era, segundo seus propugnadores, seria o fato de o antigo sujeito – o sujeito moderno (soberano, centrado, individual, racional e consciente) – estar agonizando, e que, em seu lugar estariam surgindo novas subjetividades – estas descentradas, fragmentadas, desterritorializadas, vazadas, desejantes. Tal concepção não ficaria sem conseqüências políticas e epistemológicas – tampouco sem contestações (HALL, 2002).

Pode-se dizer que a palavra que está no centro das discussões é a palavra cultura. A “grande descoberta” das décadas de 60 e 70 do século passado parece ter sido que toda experiência humana se dá na, e é mediada pela cultura. Desta premissa, seguiu-se que realidade humana e cultura são equivalentes – o real é o cultural; daí para dizer que não existe o real, apenas o cultural, foi um salto (ou, quem sabe, um deslize). Entretanto, se seguirmos os passos do raciocínio de Flamarion, veremos que não só as origens, mas a própria celeuma do pós-moderno encontra-se mais arraigada na modernidade do que podem querer os seus defensores. Segundo ele, o debate atual em torno da cultura é a reiteração de uma outra discussão que já estava presente no momento mesmo da forja dos conceitos de cultura e civilização.

Foi no século XVIII que a palavra cultura (nas filosofias da Alemanha e da França), tomada de empréstimo do vocabulário agrícola, passou a fazer parte do vocabulário filosófico, “Cultivar a terra” passou a servir de metáfora para a “cultura de si mesmo”, ou seja, é nesse momento que o homem passa a ser compreendido como um ser que é fruto de sua própria criação (ou cultivo). A questão estava na definição deste conceito, nas filosofias destes dois países. Pelos franceses a civilização era entendida como a realização de culturas elevadas, caracterizadas pela urbanização, laicização do Estado, progresso científico e tecnológico – enfim, por um viés evolucionista e otimista. Já para o modelo interpretativo de origem alemã, a cultura era entendida como os modos de vida específicos de cada povo, que lhe conferiam coesão social e identidade – especialmente aqueles mais arcaicos, tradicionais, e relacionados à vida rural (romantismo?) – em oposição a civilização, associada à urbanidade e aos modos de vida rapidamente mutáveis das cidades; a civilização, portanto, era vista negativamente. Para Flamarion, o pós-moderno seria uma vitória do viés interpretativo de matriz alemã – que valorizava as especificidades como geradoras de identidades locais – configurado como um relativismo hipertrofiado e uma veemente recusa de toda noção de teleologia e progresso.

É comum, no argumento em defesa do pós-moderno, estar presente uma acusação contra a ciência e a racionalidade; elas são vistas como instrumentos de dominação da cultura Ocidental sobre outros povos, como uma arma de violência contra as identidades e os saberes locais (ou pessoais mesmo). Eles vêem na marcha de desenvolvimento teleológico da Razão, assim como os Adorno e Horkheimer da Dialética do Esclarecimento, uma marcha maldita que parte da civilização helênica e leva direto a Hitler (para alguns, ela teria partido do Renascimento). De qualquer forma, as acusações contra Ciência e Razão são, de fato, uma recusa encarniçada de toda e qualquer pretensão de universalidade e totalidade. Para eles, é o afã universalista que leva os homens a invadirem terras alheias, destruírem suas culturas, suas tradições, suas crenças, as estruturas que lhes permitiam estar no mundo, e imporem seus próprios valores como universalmente válidos (católicos); para eles, é a crença na posse de um conhecimento total que leva os homens a menosprezarem os conhecimentos locais, as formas de conceber e representar o mundo específicas de cada povo, desqualificando legados culturais, aniquilando formas de subjetividade (não identidades, mas diferenças culturais) sem as quais o mundo fica mais pobre; para eles, é a vontade de unidade e de centralização que legitima nos (e até mesmo dá origem aos) regimes totalitários, a morte do diferente, do não idêntico, do não enquadrado.

Para escrever um parágrafo bem curto: eles argumentam que a visão pós-moderna, calcada na fragmentação em oposição à unidade, na valorização das formas localizadas de conhecimento em oposição à universalidade pretendida pela Ciência, no descentramento em oposição à centralização, no desejo em oposição à Razão – tudo isso possibilita uma postura tolerante, capaz de evitar os excessos catastróficos da Razão (instrumental) (NANDA, 1999).

Negada a razão como forma legítima de conhecer o mundo, o que restou? De uma maneira um tanto quanto exagerada na exposição, mas (segundo considero) de jeito nenhum equivocada no conteúdo, eu diria: a fantasia. Barthes (1998) fala-nos que é dever das Ciências Sociais – sob o risco de estar usando de má-fé – romper as fronteiras que as separam da Literatura (se ainda não na pesquisa, com certeza no discurso), pois ambas não estudam mais do que a mesma coisa. E há outros estudiosos, por exemplo, Linda Hutcheon (1991), que afirmam não haver, nem nunca ter havido de fato (a não ser no imaginário, como mito) uma História que tenha sido isenta de ser também, e principalmente, Literatura – posto que a atividade do historiador é essencialmente a de escrever, que ele constrói suas narrativas usando as mesmas técnicas de linguagem que um escritor e, no preenchimento das lacunas documentais, ele não pode se eximir do uso da imaginação e da criatividade. E ainda Albuquerque Junior (2004) não hesita em nenhum momento em afirmar que o historiador é, na verdade, um simples contador de histórias – um contador cujas histórias têm grande importância para a sociedade, mas que não visita nenhuma fonte diferente da que é visitada pelos poetas: a imaginação.

Esta é uma velha conhecida nossa: a discussão em torno da objetividade do trabalho do cientista social. Mas aqui ela ganha um novo matiz: não são os interesses ideológicos do autor que comprometeriam a objetividade, mas o fato puro e simples de ele ser um autor – e, como autor, de ele não poder se negar a criar. A inovação pós-moderna, no entanto, está no fato de que isto não é motivo de preocupação, mas de rejubilo: “o historiador é como o poeta, então aos versos!”, diria um entusiasta pós-moderno.

Foi primeiramente na produção estética (ou ficcional) que se começou a mesclar elementos oriundos da realidade com outros elementos oriundos da imaginação de forma deliberada e com valor positivo – mas há quem defenda (com argumentos anti-razão) que o mesmo procedimento é válido para as Ciências Sociais, notadamente a História. A exemplo disso, Linda Hutcheon, referindo-se ao Ragtime, de Doctorow, diz que nesse romance (caracterizado por ela como metaficção-historiográfica) o referente histórico esta muito presente, por que:

Não só existe uma evocação precisa de um período específico do capitalismo americano de início do século XX, com a devida representação de todas as classes envolvidas, como também aparecem personagens históricos dentro da ficção. [...] mistura do histórico e do fictício e [...] adulteração dos “fatos” da história consagrada. Porém, esse é o principal meio de fazer com que o leitor se conscientize sobre a natureza específica do referente histórico (Hutcheon, 1991, p. 122).

“A natureza específica do referente histórico” de que fala Hutcheon não é tão específica assim: segundo ela mesma, é idêntica à da ficção. Algumas linhas antes desse trecho, Hutcheon já havia dito que “a ficção e a história são discursos, ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado”, e “o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas” (p. 122, grifo da autora). Na visão dela, metaficções-historiográficas, como a de Doctorow, servem para evidenciar o caráter essencialmente literário da própria história. Para ela, a história possui um referente “real”, no entanto tal referente é inatingível, nós só podemos conhecê-lo através de sua representação lingüística, ou seja, através da linguagem; e seria neste momento de mediação que a história e a ficção se tocariam e se misturariam. Ora, a ficção, assim como a história, possui um referente na realidade, mas, assim como a história, só o atinge através da linguagem – história e ficção seriam, portanto, irmãs gêmeas, e gêmeas siamesas.

Para o paradigma iluminista, a realidade era concreta, até certo ponto mensurável – ou pelo menos redutível a mensurações –, até certo ponto racional – ou redutível a racionalizações, e de qualquer forma, a maneira como se a encarava sempre era uma maneira racional, e a maneira de abordá-la – para conhecê-la – era através da Ciência. O conhecimento científico era privilegiado porque extraía seu conteúdo do real, através de métodos e técnicas de pesquisa, e porque seus resultados eram verificáveis (ou, no dizer de Popper, falseáveis). Mas para o paradigma pós-moderno, ou epistemologia do sonho, a realidade perdeu a sua concretude, pois se deixou de acreditar no contato com ela e passou-se a creditar que só é possível o contato com as representações que nós mesmos criamos; a ciência passou a ser uma representação entre outras, sem qualquer tipo de prestígio (e, ainda por cima, teve que carregar a acusação de despotismo e o estigma de co-autoria das catástrofes do século XX). A fantasia, no paradigma iluminista, era vista como o falso, o não confiável, o irracional, era completamente desacreditada e relegada ao status de preconceito (como o mito, por exemplo). Já na epistemologia do sonho, a fantasia é hipertrofiada, celebrada, tomada como um conhecimento tão válido quanto qualquer outro (posto que todos são representações) e ainda goza dos privilégios da inocência, de representar a liberdade – contra o aprisionamento da ciência –, e de estar diretamente associada à poesia, ou ao poético – o que é muito valorizado pelo pós-moderno.

Sonho: imagens oníricas na ciência e na arte

I

Shakespeare, La Fontaine, os Grimm, Perrault, Suassuna – são muitos os escritores que se valem de temas, argumentos, personagens e episódios extraídos dos contos populares para construírem suas próprias obras. O dinamarquês Hans Christian Andersen, por exemplo, um dos maiores contadores de história que conhecemos, garimpou do folclore europeu quase a totalidade dos seus contos de fada. O Sandman (do inglês, algo semelhante a “homem que possui a areia”), que na tradução brasileira de Pepita Leão foi batizado de Velho do Sono, e que pode ser relacionado a uma outra personagem do nosso folclore, o João-Pestana, é um desses – garimpado do imaginário popular e refinado pela pena alquímica de Andersen. Ele é um ser encantado que vem durante a noite, carregando nas mãos um saco cheio de areia mágica; caminha suave como uma canção de ninar e, quando as crianças estão quietinhas, sopra a areia nos seus olhos, fazendo-as sentir sono e dormirem; e é por causa da areia soprada pelo Sandman que as crianças esfregam os olhos, quando estão adormecendo. Data de 1834 a versão de Andersen para a história do Velho do Sono.

154 anos depois, em 1988, um escritor americano chamado Neil Gaiman, com uma estratégia aparentemente semelhante à do contista dinamarquês (tomar personagens de uma outra tradição), se apropriou do Sandman para a criação da obra que o tornaria famoso e o colocaria ao lado de escritores como Stephen King e Ane Rice: uma série de histórias em quadrinhos que trazia o mesmo nome do personagem principal. A série se estendeu por oito anos, até 1996. No Brasil, começou a ser publicada pela editora GLOBO em 1989.

Na verdade, esse personagem já havia sido utilizado anteriormente em HQs (o próprio Gaiman, na edição nº 05, p.26, se refere ao “Sandman da Era de Ouro”, e sua participação em uma história da Liga da Justiça), mas a reelaboração de 88 é completamente diferente, e a linguagem estética de Neil Gaiman pode ser vista como reveladora da maneira “pós-moderna” de criar – ou mesmo de pensar.

Em primeiro lugar, seria pertinente levar a cabo um breve resumo do argumento e de alguns caracteres relevantes da série. Sandman (ou Sonho dos Perpétuos, Morpheus, Oneiros – há uma infinidade de nomes pelos quais se pode chamá-lo) é uma personificação antropomórfica da idéia sonho; é membro de uma família um tanto quanto desequilibrada de sete irmãos (sem pai ou mãe) chamada de Os Perpétuos; eles são quase tão antigos quanto o próprio tempo, e, por ordem de idade são: Destino, Morte, Sonho, Destruição, as gêmeas Desejo e Desespero, e Delirium, que já foi Deleite; cada um deles tem seu próprio reino e responsabilidades. Lorde Morpheus é o responsável pelos sonhos de todos os seres, não apenas dos humanos, mas também de animais, espaços e deuses. A história começa quando um bruxo mortal tenta aprisionar a Morte (para conseguir a imortalidade) e, por engano, aprisiona Sonho. O fato se dá em 1914, o primeiro ano da Primeira Guerra Mundial, e o Senhor dos Sonhos permanece aprisionado até o ano de 1989. (Curiosamente, o aprisionamento de sonho corresponde quase que completamente ao Breve Século XX de Hobsbawm, o tempo em que morreram as utopias). Finalmente liberto Morpheus busca vingança de seus raptores e a reconstrução do seu reino.

Quanto aos aspectos formais, o que se pode notar facilmente é a onipresença do pastiche na linguagem de Sandman – desde o protagonista e os cenários, referências musicais, cinematográficas e a outras HQs até citações de clássicos da literatura, como Allan Poe, Lewis Carrol e Shakespeare. Além disso, ora ou outra, aparecem nos contos, personagens “reais” e referências a fatos históricos, recontextualizadas segundo a lógica do universo criado por Gaiman.

Tomemos agora, como exemplo, o conto “Sonho de uma Noite de Verão”, publicado na edição nº 19, escrita por Neil Gaiman e desenhada por Charles Vess, com “participação especial” de Shakespeare e dos habitantes do mundo das fadas. Algumas edições antes, vimos o jovem Shakespeare – razoável como ator, mas péssimo poeta – escrevinhando seus terríveis versos e mostrando-os ao, já consagrado, Chistopher (Kit) Marlowe. Quando Shakespeare (ou Will, como é chamado então) diz que barganharia como Fausto pelo dom de escrever, de criar sonhos que sobrevivessem para muito além de sua morte, Morpheus aproxima-se dele e convida-o para conversar. No conto Sonho de uma Noite de Verão ficamos sabendo qual o teor do pacto entre o dramaturgo e o Perpétuo. Nada parecido com vender a alma, tudo que Lorde Morpheus exige de Shakespeare são duas peças dedicadas aos sonhos, a primeira e a última de sua carreira – o que ele fará com o Sonho... e A Tempestade.


II (Breves notas sobre o pastiche na linguagem pós-moderna)

A arte moderna primava pela originalidade; é possível identificar as idiossincrasias de todos os grandes autores modernos. Da mesma forma, era responsabilidade dos artistas modernos a coerência e a lógica, em uma palavra, a seriedade de suas obras. Pois é justamente com isso que a arte pós-moderna se propõe a romper. Em vez de artistas compromissados com a seriedade, temos artistas brincalhões; em vez de homens que tem a arte como uma missão, veículo para a transmissão de uma mensagem, muitas vezes humanista e libertadora, temos artistas que deliberadamente constroem obras desprovidas de propósitos universalistas ou de mensagem emancipadoras, obras que existem simplesmente por existir, destinadas apenas à decoração; no lugar das obras densas e profundas dos artistas modernos, temos as obras de confessada futilidade e leveza, sem as pretensões de genialidade que outrora norteavam as ambições dos artistas (JAMESON, 2006).

Com a arte moderna, devido às idiossincrasias dos autores, era possível fazer imitações, e essas imitações tinham um sabor de ironia, de crítica; era a chamada paródia. Dentro do que poderíamos chamar de proposta pós-moderna, na qual a originalidade goza de pouco prestígio (e é rara), a própria paródia perde muito de seu sentido, tornando-se uma figura de linguagem um tanto descontextualizada. Dessa forma – sem a originalidade dos autores modernos, e sem a possibilidade da imitação irônica e crítica – que linguagem falaria a arte pós-moderna? A arte pós-moderna cria uma nova figura de linguagem: o pastiche. O pastiche também é uma imitação, mas não tem as intenções críticas da paródia; segundo Jameson (2006) ele é pálido, ou seja, é inócuo, é gratuito:
O pastiche, assim como a paródia, é a imitação de um estilo peculiar e único, o uso de uma máscara estilística, o discurso em uma língua morta. no entanto, ele é uma prática neutra (...), desprovida do motivo oculto da paródia, sem o impulso satírico, sem o riso (...) O pastiche é a paródia pálida, a paródia que perdeu o seu senso de humor (...)
O pastiche é uma canibalização: a linguagem, o fragmento, a referência a uma outra realidade ou contexto é devorada por uma nova composição que lhe desvirtua o sentido original e desloca os elementos de suas posições naturais. O conto “Sonho de uma noite de verão”, de Neil Gaiman, desde o título, é canibalizado da peça shakespeariana. Os personagens, as falas, o enredo de uma são arrancados como que a dentadas da outra e metabolizados na constituição de um objeto que reestrutura o passado.
(Continua)

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